Embora já tenhamos discorrido a respeito do tema, neste ponto a análise far-se-á sob o enfoque específico da Lei nº 9.099/95.
Apesar de haver posicionamentos diversos a respeito da matéria, a nosso ver, o que mais condiz com a hermenêutica, refere-se ao fato de a expressão abranger todas as autoridades administrativas investidas da função policial, ou seja, conforme estabelece o Conselho de Redação da “Enciclopédia Saraiva de Direito”, “ ‘...indica a pessoa que ocupa cargo e exerce funções policiais, como agente do Poder Executivo...’ ”[1]
Vistos posicionamentos diversos sobre o conceito e abrangência da autoridade policial (lato sensu), passaremos a analisá-los sob o ponto de vista estrito do art. 69 do diploma legal objeto do presente trabalho:
"Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. ".
Citando-se Julio Fabbrini Mirabete[2]:
“As autoridades policiais são as que exercem a polícia judiciária que tem o fim de apuração das infrações penais e da sua autoria (art. 4º, CPP)...”.
E o autor continua, mais adiante, procurando demonstrar a improcedência de afirmar-se que
“... qualquer agente público investido da função policial...” pode ser entendido como autoridade policial para fins de atuação no que concerne às infrações de menor potencial ofensivo."...O conceito de ‘autoridade policial’ tem seus limites fixados no léxico e na própria legislação processual. ‘Autoridade’ significa poder, comando, direito e jurisdição, sendo largamente aplicada na terminologia jurídica a expressão como o ‘poder de comando de uma pessoa’, o ‘poder de jurisdição’ ou ‘o direito que se assegura a outrem para praticar determinados atos relativos a pessoas, coisas ou atos’. É o servidor que exerce em nome próprio o poder do Estado...".
Entende o autor que em face de tal fundamentação, “...os agentes públicos que são investigadores, escrivães, policiais militares...” não são autoridades policiais, uma vez que são subordinados às autoridades respectivas.
Damásio Evangelista de Jesus[3] tem entendimento diverso. Para ele:
"O art. 69 da Lei nº 9.099, ao dispor que ‘a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários’, busca agilizar o procedimento inquisitivo e, com isso, a prestação jurisdicional final...".
Entende o autor que o conceito de autoridade policial, para fins da Lei em estudo, é diverso do constante do Código de Processo Penal, afirmando que:
"É inequívoco que o legislador, ao tratar do inquérito policial no Código de Processo, empregou a expressão ‘autoridade policial’ para designar os agentes públicos com poderes administrativos para a presidência do inquérito, lavratura de auto de prisão em flagrante...".
E prossegue o penalista:
“A função de polícia judiciária, que compreende toda a investigação e produção extrajudicial de provas, é conduzida por Delegados de Polícia de carreira e não policial militar.”
Afora questionamentos referentes à autoridade policial restrita aos Delegados de Polícia, para fins do art. 4º do Código de Processo Penal, parece-nos esclarecedora a menção a tal expressão no contexto das infrações penais de menor potencial ofensivo.
A questão motivou a discussão e emissão de pareceres por parte de colegiados nacionais, oriundos, dentre outros, da Comissão Nacional de Interpretação da Lei nº 9.099, Confederação Nacional do Ministério Público e Colégio Permanente de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil.A Comissão Nacional de Interpretação da Lei em estudo, sob coordenação da Escola Nacional de Magistratura e presidida pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Sálvio de Figueiredo Teixeira, assim dispôs em sua nona conclusão:
“A expressão ‘autoridade policial’ referida no art. 69 compreende quem se encontra investido em função policial...”.[4]
No mesmo sentido estabeleceu a Confederação Nacional do Ministério Público, em sua primeira conclusão:
"A expressão ‘autoridade policial’, prevista no art. 69 da Lei 9.099/95, abrange qualquer autoridade pública que tome conhecimento da infração penal no exercício do poder de polícia.".[5]
No que concerne à conclusão do Colégio Permanente de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil, reunido em Vitória, ES, de 19 a 20 de outubro de 1995, observamos o seguinte:
“...pela expressão autoridade policial se entende qualquer agente policial, sem prejuízo da parte ou ofendido levar o fato diretamente a conhecimento do Juízo Especial.”[6]
Reconhecendo a competência dos policiais militares para a lavratura de termos circunstanciados, veio à lume a "carta de Cuiabá", oriunda do XVII Encontro Nacional dos Corregedores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União, a qual julgamos oportuno reproduzir:
"CARTA DE CUIABÁ
Os Corregedores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União, reunidos em Cuiabá, MT, nos dias 25 a 28 de agosto de 1999, por ocasião do XVII Encontro Nacional,
considerando que o conceito de autoridade policial aludido pelo art. 69, da Lei nº 9.099/95, não deve ser interpretado restritivamente;considerando os princípios da simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, previstos nos artigos 2º e 62, da Lei nº 9.099/95,
e considerando que a atuação ministerial, pautada pelos cânones do interesse público, independe da origem do comunicado do ilícito criminal para adoção das providências pertinentes;concluem pela oportunidade da edição de recomendação aos integrantes do Ministério Público dos Estados e da União, observado o seguinte:
a) o reconhecimento da plena legalidade dos termos circunstanciados lavrados por agentes públicos regularmente investidos nas funções de policiamento;
b) a possibilidade da requisição direta de informações, documentos, diligências, laudos, perícias, etc, quando necessárias à elucidação dos fatos, não importando a origem do correspondente termo circunstanciado;
c) a faculdade de remessa das peças ao juízo comum quando a complexidade ou circunstâncias do caso não permitirem a formulação da denúncia, nos termos do § 2º, art. 77, da Lei 9099/95 .
Cuiabá, MT, 28 de agosto de 1999".
Mas o que diz a respeito do tema o Superior Tribunal de Justiça?
Ao que parece, embora por caminho inverso, firmou a competência dos policiais militares para a lavratura de termos circunstanciados ao estabelecer, à unanimidade, que “... nos casos de prática de infração penal de menor potencial ofensivo, a providência prevista no artigo 69 da Lei nº 9.099/95 é da competência da autoridade policial, não consubstanciando, todavia, ilegalidade a circunstância de utilizar o Estado o contingente da Polícia Militar” (HC 1998/0019625-0).
Diante do exposto, não parece restar dúvida de que o policial militar está abarcado pelo raio de abrangência estabelecido pelo art. 69 da Lei n.º 9.099/95, em sua menção a “autoridade policial”. Logo, entendemos não ser prudente (e legal) o estabelecimento de restrições de competência aos “...agentes públicos encarregados do policiamento...”[7] (em vista da posição hierárquica, função exercida e órgão a que pertencem) para adoção dos procedimentos policiais preconizados pelo artigo supra, sob pena de ferirmos, não apenas a hermenêutica, mas, sobretudo, os critérios previstos no art. 62 da Lei citada [8], obstando o que, no dizer de Damásio Evangelista de Jesus[9], representa a finalidade básica do art. 69: a agilização da “prestação jurisdicional final”.
Mesmo que nossa discussão fosse pautada sob a égide exclusiva do Código de Processo Penal, a leitura do inteiro teor de seu art 4º (sem omissão ao parágrafo único) poderia soar reveleadora:
"Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria. (Redação dada pela Lei nº 9.043, de 9.5.1995)
Parágrafo único. A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.".
E não nos esqueçamos ainda de que o próprio art 144 da Constituição Federal ainda pende de lei complementar que o discipline; afinal, como diz seu § 7º:
"A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.".
A propósito, funções de polícia judiciária da União à parte, a expressão "com exclusividade" foi utilizada pelo legislador em algum lugar?
Talvez seja por tal motivo que a Polícia Civil realize, sem problemas legais, policiamento ostensivo.
Mas, e a Polícia Militar? Pode fazer mais do que faz? Muito mais?
[1] R. Limongi França apud Álvaro Lazzarini, Aditamento ao Boletim da Polícia Militar. Rio de Janeiro, nº 64, 1996, p.13.
[2] Julio Fabbrini Mirabete, Juizados especiais criminais. 3 ed. São Paulo:Atlas, 1998., pp. 60-61.
[3] Damásio Evangelista de Jesus, Lei dos juizados especiais criminais anotada. 3 ed. rev. e ampl. São Paulo:Saraiva, 1996, p. 58.
[4] Ibid., 1996, p. 60.
[5] Julio Fabbrini Mirabete, op. cit., 1998, p. 60.
[6] Damásio Evangelista de Jesus, op. cit., 1996, p. 60.
[7] Ibid., 1996, p. 55.
[8] Oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade.
[9] Damásio Evangelista de Jesus, op. cit., 1996, p. 34.
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