01/06/2019

Os três "pês"

“Cadeia no Brasil é para preto, pobre e prostituta”.

Vez por outra o dito popular vem à baila e já não tão raro sob enfoques que lhe aproveitam apenas a parte final, extrapolando a abordagem estritamente carcerária, e é nessa esteira de raciocínio que me atrevo a aventurar aproveitando dois dos qualificativos e comutando outro para tentar falar um pouco de vulto da história do Brasil ao qual o Brasil ainda não deu o devido valor.
Carlos Magno Nazareth Cerqueira, militar de polícia letrado em psicologia, foi de fato um subversivo ao buscar o desequilíbrio de um sistema militar e culturalmente sedimentado, todavia, equivocado.
“A PM está proibida de subir morro”.
Frase atribuída ao governador Leonel de Moura Brizola, mandatário que, no início da década de 1980, rompeu a hegemonia verde oliva e destinou a um Coronel PM o comando da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
Cerqueira, Coronel PM filho de Cabo também PM, assumiu então não apenas o Comando Geral, mas a até então inexistente Secretaria de Estado de Polícia Militar, extinguindo-se a pasta da “segurança pública”, mais um front antes ocupado por “combatentes” do Exército Brasileiro.
“Ele vai desmilitarizar a PM”.
Profecia atribuída com grande dose de repulsa e por vezes prenunciada de adjetivações nada nobres ao gestor Cerqueira.   
Talvez meias verdades ou verdades descontextualizadas sejam piores até do que mentiras.
Cerqueira de fato pretendia desmilitarizar a PM e Brizola proibia a PM de subir morro, mas a abordagem jamais foi tão simplória assim.
Ao assumir a gestão da PM, Cerqueira enxergou – e o fez bem à frente de seu tempo – a necessidade de mudar o ethos da Polícia Militar; de afastá-la da lógica majoritária e rasa de “combate ao crime”, buscando uma expertise que lhe deveria ser peculiar, muito menos “guerreira” do que policial, focada mais no atendimento da população, do que em ações bélicas de “ataque” a criminosos.
No mesmo sentido, emergia de Brizola não exatamente a vedação de acesso da PM ao morro, mas a obrigação de que tal ação fosse realizada de forma planejada, com objetivos tangíveis e tendo como premissa basilar a preservação da vida humana, inclusive, dos próprios policiais.
Cerqueira percebeu de forma vanguardista que o modelo de administração militar no âmbito policial, vigente em diversos outros países além do Brasil e em todos os continentes, não deveria ser pressuposto de afastamento entre polícia e sociedade.
Se ainda hoje há “estudiosos” que insistem em apontar pretensa incompatibilidade entre modelo de administração militar e exercício de atividade policial, Cerqueira utilizou o modelo militar de administração – afinal, ele era o Comandante Geral – para subverter as práticas ditas policiais então vigentes, fazendo nascer algo novo no cenário nacional e ainda hoje fruto de incompreensões.
Da caneta, da autoridade militar, das pesquisas e da mente brilhante do Cel Cerqueira nasceu a práxis policial focada no atendimento dos anseios sociais e na construção de soluções compartilhadas para a melhoria de condições locais tendo como promotor não o “guerreiro”, mas o chamado “policial comunitário”.
Policial comunitário que em verdade era “rotulado” como tal de forma preconceituosa e discriminatória pelos “guerreiros” que talvez vissem naquela novidade um delírio ou um mecanismo destinado a afastar a PM do “combate” e a proteger os marginais; afinal, “Brizola proibiu a PM de subir o morro”.
Mas Cerqueira não interrompeu a semeadura...
Mandou traduzir e distribuir aos seus cadetes obras de José María Rico Cueto; criou, dentre outras tantas coisas que acabaram por reverberar Brasil afora e que em época recente no mesmo Rio de Janeiro assumiram configuração similar, embora com diversa titulação e sem os créditos devidos, o Grupamento de Aplicação Prático Escolar, com ênfase na lógica de polícia comunitária e embrião do que viria a ser mais à frente e em seu segundo Comando Geral o Batalhão Escola de Polícia Comunitária; o Grupamento Especial de Turismo; o Grupamento Especial de Policiamento em Estádios e o Programa Educacional de Resistência às Drogas (PROERD).
Buscou ainda introduzir no âmbito interno dinâmicas voltadas à gestão participativa, tentando trazer os antes “guerreiros” para a discussão e reflexão acerca dos problemas da Corporação e da sociedade.
Elaborou e fez publicar o primeiro Plano Diretor da história da Polícia Militar.
Criou e deu independência a algo também novo em sua época: uma Corregedoria de Polícia. Cerqueira estabeleceu ligação funcional direta ao seu Gabinete, sem qualquer outra subordinação, da então Corregedoria Geral da Polícia Militar.
No âmbito da Biblioteca da Polícia Militar, deu ensejo à publicação dos “cadernos de polícia”, com temas focados no saber policial e em experiências internacionais, como, para citar apenas alguns exemplos: “polícia comunitária”, “administração de patrulhas policiais”, “a redução do temor em relação ao crime em Houston e Newark”, “manual de vigilância de bairro”, “polícia internacional”, “valores éticos de policiamento, a evolução da estratégia de policiamento, estratégias institucionais para o policiamento, crime e administração”; “administração policial contemporânea e qualidade do serviço policial”, “polícia, violência e direitos humanos”; “a experiência do patrulhamento preventivo da cidade de Kansas”, “cartografia da prevenção da delinquência”, “estresse e mediação de conflitos”, “introdução ao estudo da vitimização e delinquência infanto juvenil” e “a investigação do crime”.
Na apresentação dos Cadernos de Polícia, Cerqueira delineou, com absoluta clareza, transparência e, ao mesmo tempo, de maneira simples, a profundidade e o arrojo de seus objetivos:

CADERNOS DE POLÍCIA inscreve-se dentro do Plano Editorial da Corporação com o escopo de atuação na área do desenvolvimento do pessoal, notadamente nos assuntos ligados à capacitação técnica do pessoal de nossos quadros. 
Todo profissional que preza o seu trabalho tem obrigação de conhecer a fundo o estado de arte de sua profissão. E hoje em dia, no estágio atual das comunicações entre os povos, nós policiais temos o dever de saber tudo o que está sendo feito em matéria de polícia, aqui e nos outros lugares do mundo. 
Os CADERNOS DE POLÍCIA pretendem  facilitar esse conhecimento, publicando textos especializados, seja na área do patrulhamento, seja no terreno da investigação criminal, seja em outros campos do conhecimento científico que tenham ligação com o trabalho policial. 
Acreditamos que, de posse desses conhecimentos, estaremos, nós policiais, em condições de, analisando as experiências e teorias de outros povos e instituições, aceitá-las quando as julgarmos válidas, adaptá-las quando considerarmos que há algo a lucrar, ou até mesmo rejeitá-las quando entendermos que não nos convém. 
É nosso intuito ainda com a publicação dos CADERNOS DE POLÍCIA, preencher uma lacuna que existe no campo da bibliografia policial; esperamos poder apoiar didaticamente os cursos de formação e especialização de oficiais, não só de nossa Corporação, como também de outros Estados.

CEL PM Carlos Magno Nazareth Cerqueira
Secretário de Estado de Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. (CERQUEIRA,  1993)

Ao mesmo tempo em que buscou incrementar a produção intelectual de novos saberes e de novos fazeres em uma velha polícia, Cerqueira revogou as “Bases Doutrinárias para o Emprego da PMERJ”, de inspiração francamente belicista e com foco voltado à defesa interna e territorial, e editou resolução destinada à aplicação, no âmbito da Polícia Militar, do “Código de Conduta dos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei”, oriundo da Organização das Nações Unidas.
Cerqueira foi Secretário de Estado de Polícia Militar nos períodos de 1983 a 1987 e de 1991 a 1995.
Em 14 de setembro de 1999, aos 62 anos de idade, foi assassinado, vítima de disparo de arma de fogo contra sua cabeça, no Centro do Rio de Janeiro, em episódio ainda não cabalmente elucidado.
Nos dias de hoje, findado recente retorno, via intervenção federal, da gestão da segurança pública às mãos de militares do Exército Brasileiro, a PM do RJ é, ainda, a que mais mata e a que mais morre no Brasil.
No mesmo Brasil que teve a felicidade de ter em Cerqueira um de seus ilustres filhos...
Um filho preto, pobre e PM.

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