30/07/2019
01/06/2019
Os três "pês"
“Cadeia
no Brasil é para preto, pobre e prostituta”.
Vez
por outra o dito popular vem à baila e já não tão raro sob enfoques que lhe
aproveitam apenas a parte final, extrapolando a abordagem estritamente
carcerária, e é nessa esteira de raciocínio que me atrevo a aventurar
aproveitando dois dos qualificativos e comutando outro para tentar falar um
pouco de vulto da história do Brasil ao qual o Brasil ainda não deu o devido
valor.
Carlos
Magno Nazareth Cerqueira, militar de polícia letrado em psicologia, foi de fato
um subversivo ao buscar o desequilíbrio de um sistema militar e culturalmente
sedimentado, todavia, equivocado.
“A
PM está proibida de subir morro”.
Frase
atribuída ao governador Leonel de Moura Brizola, mandatário que, no início da
década de 1980, rompeu a hegemonia verde oliva e destinou a um Coronel PM o
comando da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
Cerqueira,
Coronel PM filho de Cabo também PM, assumiu então não apenas o Comando Geral,
mas a até então inexistente Secretaria de Estado de Polícia Militar,
extinguindo-se a pasta da “segurança pública”, mais um front antes ocupado por
“combatentes” do Exército Brasileiro.
“Ele
vai desmilitarizar a PM”.
Profecia
atribuída com grande dose de repulsa e por vezes prenunciada de adjetivações
nada nobres ao gestor Cerqueira.
Talvez
meias verdades ou verdades descontextualizadas sejam piores até do que
mentiras.
Cerqueira
de fato pretendia desmilitarizar a PM e Brizola proibia a PM de subir morro,
mas a abordagem jamais foi tão simplória assim.
Ao
assumir a gestão da PM, Cerqueira enxergou – e o fez bem à frente de seu tempo
– a necessidade de mudar o ethos da
Polícia Militar; de afastá-la da lógica majoritária e rasa de “combate ao
crime”, buscando uma expertise que lhe deveria ser peculiar, muito menos
“guerreira” do que policial, focada mais no atendimento da população, do que em
ações bélicas de “ataque” a criminosos.
No
mesmo sentido, emergia de Brizola não exatamente a vedação de acesso da PM ao
morro, mas a obrigação de que tal ação fosse realizada de forma planejada, com
objetivos tangíveis e tendo como premissa basilar a preservação da vida humana,
inclusive, dos próprios policiais.
Cerqueira
percebeu de forma vanguardista que o modelo de administração militar no âmbito
policial, vigente em diversos outros países além do Brasil e em todos os
continentes, não deveria ser pressuposto de afastamento entre polícia e
sociedade.
Se
ainda hoje há “estudiosos” que insistem em apontar pretensa incompatibilidade
entre modelo de administração militar e exercício de atividade policial,
Cerqueira utilizou o modelo militar de administração – afinal, ele era o
Comandante Geral – para subverter as práticas ditas policiais então vigentes,
fazendo nascer algo novo no cenário nacional e ainda hoje fruto de
incompreensões.
Da
caneta, da autoridade militar, das pesquisas e da mente brilhante do Cel
Cerqueira nasceu a práxis policial focada no atendimento dos anseios sociais e
na construção de soluções compartilhadas para a melhoria de condições locais
tendo como promotor não o “guerreiro”, mas o chamado “policial comunitário”.
Policial
comunitário que em verdade era “rotulado” como tal de forma preconceituosa e
discriminatória pelos “guerreiros” que talvez vissem naquela novidade um
delírio ou um mecanismo destinado a afastar a PM do “combate” e a proteger os
marginais; afinal, “Brizola proibiu a PM de subir o morro”.
Mas
Cerqueira não interrompeu a semeadura...
Mandou
traduzir e distribuir aos seus cadetes obras de José María Rico Cueto; criou,
dentre outras tantas coisas que acabaram por reverberar Brasil afora e que em
época recente no mesmo Rio de Janeiro assumiram configuração similar, embora
com diversa titulação e sem os créditos devidos, o Grupamento de Aplicação
Prático Escolar, com ênfase na lógica de polícia comunitária e embrião do que
viria a ser mais à frente e em seu segundo Comando Geral o Batalhão Escola de
Polícia Comunitária; o Grupamento Especial de Turismo; o Grupamento Especial de
Policiamento em Estádios e o Programa Educacional de Resistência às Drogas
(PROERD).
Buscou
ainda introduzir no âmbito interno dinâmicas voltadas à gestão participativa,
tentando trazer os antes “guerreiros” para a discussão e reflexão acerca dos
problemas da Corporação e da sociedade.
Elaborou
e fez publicar o primeiro Plano Diretor da história da Polícia Militar.
Criou
e deu independência a algo também novo em sua época: uma Corregedoria de
Polícia. Cerqueira estabeleceu ligação funcional direta ao seu Gabinete, sem
qualquer outra subordinação, da então Corregedoria Geral da Polícia Militar.
No
âmbito da Biblioteca da Polícia Militar, deu ensejo à publicação dos “cadernos
de polícia”, com temas focados no saber policial e em experiências
internacionais, como, para citar apenas alguns exemplos: “polícia comunitária”,
“administração de patrulhas policiais”, “a redução do temor em relação ao crime
em Houston e Newark”, “manual de vigilância de bairro”, “polícia internacional”,
“valores éticos de policiamento, a evolução da estratégia de policiamento,
estratégias institucionais para o policiamento, crime e administração”; “administração
policial contemporânea e qualidade do serviço policial”, “polícia, violência e
direitos humanos”; “a experiência do patrulhamento preventivo da cidade de
Kansas”, “cartografia da prevenção da delinquência”, “estresse e mediação de
conflitos”, “introdução ao estudo da vitimização e delinquência infanto juvenil”
e “a investigação do crime”.
Na
apresentação dos Cadernos de Polícia, Cerqueira delineou, com absoluta clareza,
transparência e, ao mesmo tempo, de maneira simples, a profundidade e o arrojo de
seus objetivos:
CADERNOS DE POLÍCIA inscreve-se
dentro do Plano Editorial da Corporação com o escopo de atuação na área do
desenvolvimento do pessoal, notadamente nos assuntos ligados à capacitação
técnica do pessoal de nossos quadros.
Todo profissional que preza o seu
trabalho tem obrigação de conhecer a fundo o estado de arte de sua profissão. E
hoje em dia, no estágio atual das comunicações entre os povos, nós policiais
temos o dever de saber tudo o que está sendo feito em matéria de polícia, aqui
e nos outros lugares do mundo.
Os CADERNOS DE POLÍCIA
pretendem facilitar esse conhecimento,
publicando textos especializados, seja na área do patrulhamento, seja no
terreno da investigação criminal, seja em outros campos do conhecimento
científico que tenham ligação com o trabalho policial.
Acreditamos que, de posse desses
conhecimentos, estaremos, nós policiais, em condições de, analisando as
experiências e teorias de outros povos e instituições, aceitá-las quando as
julgarmos válidas, adaptá-las quando considerarmos que há algo a lucrar, ou até
mesmo rejeitá-las quando entendermos que não nos convém.
É nosso intuito ainda com a
publicação dos CADERNOS DE POLÍCIA, preencher uma lacuna que existe no campo da
bibliografia policial; esperamos poder apoiar didaticamente os cursos de
formação e especialização de oficiais, não só de nossa Corporação, como também
de outros Estados.
CEL PM Carlos Magno Nazareth
Cerqueira
Secretário de Estado de Polícia
Militar do Estado do Rio de Janeiro. (CERQUEIRA, 1993)
Ao
mesmo tempo em que buscou incrementar a produção intelectual de novos saberes e
de novos fazeres em uma velha polícia, Cerqueira revogou as “Bases Doutrinárias
para o Emprego da PMERJ”, de inspiração francamente belicista e com foco
voltado à defesa interna e territorial, e editou resolução destinada à
aplicação, no âmbito da Polícia Militar, do “Código de Conduta dos Funcionários
Responsáveis pela Aplicação da Lei”, oriundo da Organização das Nações Unidas.
Cerqueira
foi Secretário de Estado de Polícia Militar nos períodos de 1983 a 1987 e de
1991 a 1995.
Em
14 de setembro de 1999, aos 62 anos de idade, foi assassinado, vítima de
disparo de arma de fogo contra sua cabeça, no Centro do Rio de Janeiro, em
episódio ainda não cabalmente elucidado.
Nos
dias de hoje, findado recente retorno, via intervenção federal, da gestão da
segurança pública às mãos de militares do Exército Brasileiro, a PM do RJ é,
ainda, a que mais mata e a que mais morre no Brasil.
No mesmo
Brasil que teve a felicidade de ter em Cerqueira um de seus ilustres filhos...
Um
filho preto, pobre e PM.
29/03/2019
Faz 30 anos
Foi rápido!
Aliás, rápido demais...
No dia 29/03/1989 e no auge de
meus 17 anos de idade marchei, ainda em trajes civis e de forma bastante
descoordenada, em direção ao pátio da então Escola de Formação de Oficiais da
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro após o solene corte da faixa que
simbolicamente demarcou o primeiro passo daqueles 75 jovens cadetes rumo à
carreira de oficial gendarme.
No dia 29/03/2019 e com a autoridade de meus precoces 47 anos de idade me vejo como um espírito no limiar do desencarne; um espírito apegado à matéria e muito mais temeroso do que curioso em relação à “nova vida” que se avizinha.
No dia 29/03/2019 e com a autoridade de meus precoces 47 anos de idade me vejo como um espírito no limiar do desencarne; um espírito apegado à matéria e muito mais temeroso do que curioso em relação à “nova vida” que se avizinha.
Verdade!
Sei que é lugar comum; só mais um jargão, mas de fato “parece que foi ontem”. E o amanhã assusta... O hoje!
Mas, tal qual o fluxo natural da vida, um dia as coisas têm mesmo que mudar.
E se eu pudesse resumir em uma
frase meu sentir em relação não apenas ao dia de hoje e ao que ele representa
(talvez tão simbolicamente quanto outrora, quando a faixa foi definitivamente
rompida), mas ao incontável somatório de momentos vividos eu diria:
Que jornada!
Sim, é verdade... A “chegada” me parece muito menos relevante do que o início do caminhar e muito menos ainda do que a viagem como um todo, com suas agruras, desafios, aprendizados e, sobretudo, realizações pessoais fruto dos bons combates que puderam ser travados e dos inúmeros camaradas de luta e de aprendizado, mesmo que nem sempre – raramente, é verdade – com vitórias ao cabo.
Que jornada!
Sim, é verdade... A “chegada” me parece muito menos relevante do que o início do caminhar e muito menos ainda do que a viagem como um todo, com suas agruras, desafios, aprendizados e, sobretudo, realizações pessoais fruto dos bons combates que puderam ser travados e dos inúmeros camaradas de luta e de aprendizado, mesmo que nem sempre – raramente, é verdade – com vitórias ao cabo.
O prazer está no caminho...
"Alma nova da Pátria esperança, o cadete é vigor, é pujança..."
As batalhas são as medalhas...
E o fim... O fim não existe!