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Escrito por um camarada de profissão, de posto e de antigas lutas.
"Vida Que Segue...
Luciano Carvalho de Souza
Meados da década de 60, nosso jovem conquistador de família humilde ingressa na valorosa Polícia Militar do Estado da Guanabara. As contingências da época, com incertezas e discursos inflamados, traziam à tona uma era de expectativas a respeito do tempo vindouro, mas uma coisa era certa - a Polícia Militar era o portal do seu orgulho familiar.
Durante a preparação para o ingresso na Polícia Militar, ainda nutria certa dúvida em ser policial militar ou se tornar funcionário de uma estatal, ouvia seu tio maldizer o Presidente da República natural de Diamantina pela ruína das terras de São Sebastião, afirmando, categoricamente, que o pior estava por vir.
Lembrava-se nosso jovem soldado de sua breve passagem pela Central do Brasil com milhares de pessoas, diante das palavras do Presidente da República natural de São Borja sobre as necessidades de reformas constitucionais urgentes para a realização de uma verdadeira reforma agrária, anunciando concomitantemente a encampação das refinarias particulares de petróleo.
Pensava ele: 'Não sou muito inteligente, mas acho que se concretizarem as medidas aqui anunciadas, muita gente com dinheiro vai levar prejuízo'.
Nosso soldado inebriava-se pelo aroma da caserna, sentia a dura disciplina, mas aplaudia com ares ofegantes os tempos do primeiro Governador da Guanabara, que lhe proporcionaram tranqüilidade e dignidade, tendo ou não mendigos assassinados, descontentes ou não, as famílias das recentes comunidades da Cidade de Deus, Vila Kennedy, Vila Aliança e Vila Esperança, ou era preferível, queimar no morro do Pasmado?
Já sob o governo do Chanceler do Pan-americano integrou a tropa que atuou na repressão ao protesto contra o fechamento do restaurante estudantil do Calabouço, sentindo uma profunda e íntima tristeza ao ver um jovem estudante secundarista tombar pelos ferimentos causados diante da ação da briosa. Curiosamente, esteve presente no cerco à igreja da Candelária por ocasião da missa de sétimo dia do mesmo estudante, mas estava de folga quando do cortejo fúnebre que reuniu cerca de 60.000 pessoas no bairro de Botafogo.
Tempos difíceis, sendo que nosso bravo policial militar não sabia ao certo o que reprimia, apenas cumpria as ordens emanadas por seus superiores hierárquicos.
Como foram duros os tempos de formação do Centro de Instrução (CI), mas o período no CFAP 31 de Voluntários a fim de galgar a respeitada graduação de Cabo foram inesquecíveis. Restando uma semana para sua formatura, esperava ansiosamente a hora de trajar sua túnica e gozar o especial momento nos braços familiares. A partir daí, só tinha um objetivo: ser sargento.
Outro momento marcante foi ao final do ano de 1966, ainda soldado, quando desabou um temporal a ocasionar muitos mortos e feridos, além de milhares desabrigados, pelas inundações e desmoronamento de encostas. Como era árdua a vida de policial militar, onde em cada momento difícil havia um servidor da lei disposto a ajudar e se possível salvar vidas, como o parto realizado no início do ano seguinte nas redondezas do morro da Providência, moradia de seu saudoso avô desde a época do regresso após a guerra aos perigosos e famintos seguidores do velho Conselheiro. Recorda-se com carinho das visitas fardado à residência, agora só habitada pela avó e tios, para ser ovacionado pela nobre condição de policial militar.
Foram muitas incertezas e conturbações no antes e no depois ao baile futebolístico do México, mas com o povo alegre e com as promessas de desenvolvimento, tudo ficava mais fácil, principalmente com a chamada 'política da bica d’água', denotando a farta distribuição de cargos feita pelo Chefe do Poder Executivo Estadual sucessor do Chanceler do Pan-americano.
Vislumbrava para seu filho de poucos meses de vida, os seus passos, um homem honrado, sustentando sua família com seu bom salário de policial militar, e principalmente, amando sua profissão de guardião da lei e da ordem. Não escondia o desejo concreto de ver seu filho na Escola de Formação de Oficiais, na medida em que sabia o respeito e status que gozava um oficial policial militar. Se ele já era motivo de orgulho, imagine seu filho ostentando estrelas no ombro.
Numa bela noite, Cabo Conquista (seu nome de guerra) teve um sonho, onde passava a caminhar pelos meados da década de 80. De cara, viu concretizado o boato da Guanabara e do Rio de Janeiro terem se tornado uma só unidade federativa, mais ainda, foi ver duas polícias tão distintas unidas, formando uma só! Inacreditável! Inacreditável também foi constatar que a chefia do poder executivo estadual, em sucessão àquele mesmo da política da 'bica d’água', estava sendo exercida pelo cunhado do Presidente deposto em 1964. Corajoso ao chefiar a 'Cadeia da Legalidade', mas segundo os comentários de momento, não soube conduzir num justo meio termo a transição de uma polícia guardiã do Estado e do Governo para uma polícia guardiã da sociedade. Não foi difícil deduzir que num suposto revanchismo pós-regime militar, travestido de respeito à dignidade humana, nada mais fácil, do que bater e vilipendiar o braço disciplinado dos milicianos estaduais.
Acordou desesperado, e mais desesperado ficou, quando lembrou dos rumores de fusão que pairavam em certos segmentos, falava-se inclusive, do início da construção da ponte unindo a Guanabara à capital fluminense. Comentou o sonho com companheiros que riram de ver a Polícia Militar do Estado da Guanabara fundida com a instituição 'treme-terra' de coração na Caserna Marechal Castrioto, e pior, tendo por comandante máximo aquele que liderava do exílio no Uruguai o 'Grupo dos Onze' e figurava como estimulante da Guerrilha de Caparão. Nosso bravo graduado sorriu e prosseguiu na satisfatória rotina de patrulhar as ruas.
Estranhamente, na próxima noite, mais um sonho, agora, ouvindo a promessa de se acabar com a violência em seis meses em oposição ao educador e ex-Ministro Chefe da Casa Civil do Governo deposto em 1964, atualmente, dizem alguns, assessorando o Presidente Salvador Allende no Chile. Nas eleições também concorreram um famoso cantor e o jornalista da 'operação' Charles Elbrick. Venceu a promessa de se acabar com a violência em seis meses, na pessoa do genro de um ilustre político fluminense (quem não lembra do amaralismo?), com apoio de um tal 'plano cruzado' muito comentado nas rodas simples e nas intelectuais.
Ainda, durante uma conversa que presenciou entre dois policiais do momento, ouviu críticas aos baixos salários, que vinham desde o início da década de 80, e que estava muito difícil conciliar o trabalho na Corporação com o bico de segurança. Reparou bem o fardamento já surrado e a grande intimidade em que um soldado se reportava a um cabo.
Mais adiante, viu uma viatura veraneio, até bonita, nas cores azul e branca, idênticas às da bandeira do novo Estado do Rio de Janeiro, e, surpreendentemente, viu um tenente comandando a guarnição, ouvindo que aquilo tivera início nos últimos anos da década de 70.
Acordou mais uma vez tenso se perguntado: 'Que violência é essa que não existe hoje que precisará ser extinta em seis meses? Pobre Guanabara! Do engenheiro revanchista ao filho de Niterói (nascido em Teresina)'. Evitou comentários, pois não gostaria de sofrer chacotas, sem contar, a presença do respeitado sargento comandante da guarnição, não sendo pertinente tal comentário na presença de um superior hierárquico.
Mais uma noite, novo pesadelo! A promessa de acabar com a violência em seis meses não tinha sido cumprida, pelo contrário, os jornais recheados de sangue relatavam mais e mais violência. Era 'Escadinha' para cá, 'Meio-quilo' para lá, uma loucura, a 'falange' estava virando 'comando' e ainda tinha uma tal de 'jacaré'! As condições de trabalho e os salários do policial militar em declínio assustador.
Para sua surpresa, o gaúcho de Carazinho, adversário de tudo e todos, principalmente do conhecido como 'general civil', tinha voltado. O 'azulão' voltou da inatividade em substuição ao 'treme-terra'. Condições piores, já no início da década de 90, com piores salários! Cercaram palácio anos antes, se reuniram em clube, e nada! Policiais assassinados, entre um papo e outro, de uma tal de 'mineira'.
Desde a chacina na Candelária até o massacre em Vigário Geral, já agonizava a herança da PMEG e da PMRJ, com o presidente de honra da Internacional Socialista, apoiado por aquele que vivia bem à frente do seu tempo, falando de 'choque disciplinar' e prontidão, com policiais militares retirando o fardamento e queimando-o e outros deitados embaixo de viaturas em dia de chuva, por falta de alojamento decente.
A essa altura, os 'herdeiros' do gaúcho de Carazinho e engenheiro já tinham se rebelado contra o 'mestre', galgando vida política autônoma. Já tinham sido prefeitos, já tinham seus afilhados políticos e um, segundo as boas e más línguas, entre um gole e outro, brigava pelo governo do Estado com o famoso prefeito do norte fluminense e radialista, também, para alguns, discípulo e até criação do tão falado presidente de honra da Internacional Socialista. Venceu o 'filho mais velho' já desgarrado, que após os primeiros meses com o general da conferência ambiental, diminuindo os poderes e o acesso do Comandante Geral ao Chefe do Poder Executivo, trouxe outro general, que segundo as boas e más línguas conheceu de perto um guerrilheiro oriundo das fileiras militares.
Despertado num tremendo suadouro, pensou em buscar ajuda médica para tantos pesadelos, não o fez, muito embora fosse tranqüilo ter atendimento médico na Corporação. Mas, três noites seguidas de pesadelo eram demais. Entre um pesadelo e outro, não podia deixar de comentar o êxito na aquisição da casa própria, ou seja, um patrimônio para sua família, fruto da economia permitida com seu trabalho na briosa PMEG.
Após a comemoração pela aquisição do imóvel mergulhou no tormento dos seus pesadelos, de maneira que sob a égide do suposto algoz de guerrilheiro, como morria policial, bandido e inocente, principalmente depois de uma tal gratificação 'faroeste', assim chamada pelos jornais.
Inacreditável, quando de uma conversa no tranqüilo cemitério sem alvenaria, próximo à invernada dos Afonsos, muito freqüentado por policiais militares, ouviu que o cabo percebia uma remuneração maior que a do sargento que por sua vez ganhava mais que o tenente!
Passando das exposições de veículos novos no pátio da Escola de Formação de Oficiais na década de 70 para as moradas de favor e construção de 'esticadinhos', e pior, morrendo! Morrendo como os tenentes da década de 70 não morriam. Diante das mortes, parcos salários e muita pressão, houve um levante tenentista sufocado pela covardia dos mais antigos, pela condescendência da mídia e pela típica politicagem.
No pesadelo também teve uma conversa sobre promoção por tempo de serviço, mas que mérito há em galgar uma graduação pelo simples decurso de tempo? Ao despertar pensou: 'Loucura, para ser sargento eu tenho é que estudar e dormir poucas noites!'.
Novas eleições, o 'filho mais novo' ainda não desgarrado contra outro 'filho mais velho' também desgarrado como o das eleições anteriores. Só que dessa vez, o melhor prefeito do Rio virou governador, como cantado durante a campanha por um puxador de samba de outro reduto 'treme-terra'. Vale dizer, que seguindo os passos dos seus 'irmãos' também desgarrou.
Mais uma vez os 'azulões' se mantinham no Comando da Corporação, segundo o transcurso do pesadelo, mas nem de longe tinham a influência do último 'treme-terra' a comandar (quando comandante geral fazia parte do primeiro escalão). Pior, o azulão do momento, segundo as boas e más línguas, tinha um 'treme-terra' no encalço. Interessante é que houve a substituição do general de início de governo (já estava virando rotina) não por outro general, mas por um coronel azulão criado em reduto 'treme-terra'. Agora sim! Mesmo com a manutenção dos baixos salários, um coronel miliciano à frente da segurança pública, seria muito bom, como foi! Para a Polícia Civil, seus recursos especiais e suas delegacias legais! Sem contar, que aquele 'treme-terra' no encalço acabou substituindo o 'azulão' que viajava durante um infeliz e trágico gerenciamento de crise.
Depois de mais um despertar sobressaltado, lembrou-se do pesadelo e do tratamento dispensado no futuro, após o trágico gerenciamento de crise, aos atuais cadetes, sobretudo ao cadete que das fileiras rasas da Corporação (fora soldado), despontava para ser o primeiro colocado de sua turma. Uma grande e considerada diferença é que nos dias atuais ele ainda possuía cabelo, ao contrário do constante no sonho.
Junto com as mudanças, muito trabalho na tentativa de se retirar as armas das mãos dos criminosos, dada as características 'topotáticas'. Entre um desejo e outro de que policiais corruptos fossem fuzilados, que diferença do curso de cabos constante no pesadelo, com intermináveis ocupações, para os cursos realizados até meados da década de 80.
Grande notícia foi a Polícia Militar possuindo seu quartel com helicópteros e lanchas, principalmente depois da falácia de isonomia e do sobrevôo da aeronave que nunca foi da Corporação. Talvez tenha sido um 'pinta e despinta' , coisas do genro daquele famoso político fluminense, sem acreditar, evidentemente, no boato de contra-cheque sem fundos.
Mais uma noite, novo pesadelo e novas tormentas. Mesmo com reajuste parcelado, os salários continuavam ruins e as condições não avançavam. É verdade que se comparado aos antecessores houve uma pequena melhora, melhora esta, segundo alguns, acompanhada do loteamento político da instituição, assim como se houve falar nas estatais.
Sem muito a acrescentar, a esposa se elegeu, batendo a vice-governadora do marido, uma ótima notícia em se tratando de mulheres no poder. Os salários continuavam péssimos, para outros os privilégios aos apadrinhados aumentavam, assim como, o loteamento político continuava, razão pela qual, pessoas inocentes continuavam a morrer e muita “gente” continuava a perder a audição.
Ainda, segundo as narrativas do pesadelo, aquele mesmo cadete promissor, sem cabelo no futuro, sofre mais uma injustiça diante da possibilidade de ser o número dois da Corporação. Dizem as boas e más línguas que a injustiça se deu por força de um simples comentário feito por alguém que teve que esperar alguns minutos na ante-sala de uma diretoria.
Com o teor do pesadelo nosso graduado começou a delirar. Agora nada mais faz sentido! Que importava o passado disciplinar, a ética e o pundonor, ou simplesmente, não saber expressar corretamente o vernáculo?
Estranho, que no avançar dos anos nos pesadelos, duas polícias continuavam a existir: uma 'treme-terra' e outra 'Guanabara'. Os salários continuavam péssimos, os policiais continuavam sendo assassinados, falava-se ainda em corrupção desenfreada e pessoas inocentes mortas pela crueldade da criminalidade e pela intempestividade do aparelho policial.
Despertando e analisando mais friamente os pesadelos, nosso bravo miliciano achava inacreditável que nas loucuras de sua mente sem limites, que um oficial superior tenha por remuneração no futuro o que um cabo tem na sua época, ao contrário de outras categorias do serviço público.
Em mais uma noite, os sonhos ou pesadelos prosseguem, com o derrotado, quando filiado a outro partido político, nas eleições municipais dos meados da década de 90 pelo ex-afilhado de um dos 'mais velhos', se elegendo governador, com invejável currículo parlamentar e defensor da terceira idade, prometendo e alegando que boas condições de trabalho e salários dignos são investimentos e não despesas em se tratando de polícia.
Finda a era 'treme-terra' e 'azulão', pelo menos aparentemente ou até onde as pressões da politicagem permitam, há o quadro de salários péssimos, boatos de corrupção desenfreada, policiais assassinados e pessoas inocentes morrendo. Quando chegou no momento de presenciar uma criança sendo arrastada por quilômetros, despertou, tamanha a barbárie, questionando, quem seriam aqueles militares que estavam por vir, muito mais bem remunerados, que não são do exército e não são da PMERJ. Será uma nova polícia, diante da falência do fruto 'azulão' e 'treme-terra'.
Por fim, lembrou-se nitidamente, também durante o pesadelo, de uma manchete num jornal paulista que dizia: 'PM do Rio tem 2º menor salário do país'.
Acordado e atormentado, pelo início da obra de construção da ponte que unirá a Guanabara a Niterói, procurou seu comandante de pelotão, um jovem tenente, e lhe relatou todo o avançar dos pesadelos. Com olhar firme e fardamento impecável obteve uma longa gargalhada complementada pelos dizeres:
'Vida que segue! Preste bem atenção cabo! No futuro nossos oficiais serão dotados do mínimo de rebeldia necessária para evitar os acontecimentos catastróficos narrados por ti a minha pessoa. Que Deus te dê um bom serviço, pois já tens um bom soldo, uma boa moradia e uma ótima família!'".